A falsa polêmica que tem envolvido o livro Por uma Vida Melhor, da Coleção Viver, e o Ministério da Educação (MEC), há quase duas semanas, repercute na mídia de forma a reduzir um debate antigo, no campo da ciência lingüística, ao jogo ambivalente do “certo” e do “errado”. Ainda assim, especialistas se esforçam para explicar, nas aspas que a eles são reservadas, que a intenção do MEC não é promover o ensino do português “errado” nas salas de aula, mas qualificar o processo de aprendizagem da norma culta – uma das formas de linguagens possíveis.
Em entrevista ao Brasilianas.org, a pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Magda Becker Soares, afirma que, por trás de tudo isso, há uma discussão de caráter político. “O mais importante é a questão ideológica, que leva as pessoas a avaliar e a acusar, sem ter conhecimento de causa, conduzidas apenas por uma determinada ideologia”, argumenta.
Para Becker, deveriam ser os próprios professores os responsáveis pela divulgação dos saberes da lingüística aos alunos. Contudo, a própria formação dos professores não os prepara adequadamente para lidar com conceitos da sociolingüística. “Os próprios professores se deixam levar por esses equívocos”.
A educadora diz acreditar que o caminho é a definição de políticas lingüísticas claras no Brasil. Isso significa aprofundar o debate sobre o letramento digital e também sobre as variações de dialetos. E para ela, o pensamento sobre a língua deve passar não apenas pela educação, mas também pela política cultural e de entretenimento.
“Uma coisa que se vê na televisão, que exigiria uma política pública de orientação para uso da linguagem, é quando se põe uma novela que se passa na região nordestina do país. E aí os atores cariocas e paulistas são ensinados a falar o dialeto de lá, como se isso fosse possível. Fazem, na verdade, uma caricatura. Uma política lingüística definiria que a televisão não tem que falsear o problema da linguagem usada”.
Brasilianas.org - Qual a relação que devemos fazer entre os conceitos da lingüística e a formulação de políticas públicas nessa área do conhecimento?
Magda Becker Soares - Talvez o mais importante seja que quem se responsabiliza pela política pública tome conhecimento dos fundamentos científicos que essas políticas precisam ter. Esse é um aspecto que está faltando dentro da discussão; não só agora, mas toda vez que se levanta essa questão de variedades lingüísticas, a discussão é feita sem fundamento no que a ciências lingüísticas já avançaram nesta questão.
Você tem de um lado a questão política, embora, no nosso caso, as políticas educacionais já tenham reconhecido, desde o governo FHC, nos parâmetros curriculares, essa questão da variedade lingüística. É reconhecido, explicitamente, e recomendado o seu uso na escola.
Qual o fator que a senhora identifica como responsável por esse atraso?
A responsabilidade maior acaba sendo, primeiro, dos leigos – os pais e as pessoas que se envolvem na educação, que, não tendo fundamentação, conhecimento, e tendo sido educados num período provavelmente anterior a esses novos conceitos sociolingüísticos, ficam levantando questões que não tem sentido. Por outro lado, os jornalistas embarcam com muita facilidade numa denúncia. A cada hora, é um preconceito que entra na berlinda. Estão sempre procurando que há intenções ocultas atrás. Eu teria medo de dizer que essa é a motivação maior.
Mas a também um embate entre o livro didático e as chamadas “apostilas”, não?
No fundo, está uma questão ideológica de grupos. Mais ideológica do que comercial, como seria o caso das apostilas – de afastar o livro didático para que as pessoas caiam mais nas apostilas dos sistemas. O mais importante é a questão ideológica, que leva as pessoas a avaliar e a acusar, sem ter conhecimento de causa, conduzidas apenas por uma determinada ideologia.
A senhora poderia identificar, historicamente, quando se começou a pensar nas variações de linguagem e no conceito de “língua viva”?
Em termos históricos, pode-se dizer que essa discussão é recente. A lingüística, ainda sem pensarmos nos ramos que surgiram dela depois, é das primeiras décadas do século 20. Isso historicamente é muito pouco. E essa questão especifica das variedades lingüísticas surge com a sociolingüística, que ainda é um ramo bem posterior ao desenvolvimento inicial da lingüística.
De meados do século passado, as pesquisas se desenvolveram, a respeito dessa questão de que a língua é falada e escrita de diferentes maneiras, dependendo de quem fala, com quem fala, em que condições fala, em que contexto fala. Mas esses conceitos são dos últimos 30 ou 40 anos. E não entrou muito fortemente, logo de início, e até hoje acho que ainda não entrou, na formação dos próprios professores. Os próprios professores se deixam levar por esses equívocos.
O que a senhora quer dizer quando afirma que agora é o momento para se pensar as especificidades do letramento gráfico e do letramento digital? Isso pode ser relacionado ao pensamento sobre linguagem e poder e, também, ao enfraquecimento da oralidade diante do registro escrito e considerado o mais verdadeiro? A oralidade pode voltar a ter o status que teve em séculos passados?
O movimento foi esse mesmo. Do movimento da oralidade como atestado da verdade para a escrita como atestado de verdade. É uma questão cultural e histórica. Mas agora estamos tendo uma retomada da oralidade, sobretudo por conta dos meios de comunicação eletrônica. O celular virou forma básica de comunicação entre as pessoas.
O letramento digital tem algo interessante. As pessoas não estão gritando contra a nova variedade de língua que está surgindo no letramento digital. Veja como as pessoas escrevem e-mails, inclusive as pessoas que defendem e usam, na maior parte da sua comunicação, a norma culta. Na hora de escrever um e-mail, fica até esquisito escrevê-lo na norma culta. E ninguém grita contra isso, mas sim contra o livro que diz que a língua oral é diferente da escrita. É uma incongruência, e vem muito da falta de reflexão sobre a questão da língua. Está muito estruturado, nas pessoas, há séculos, a idéia de que há um português certo e que todo o resto é erro. E vai demorar para mudarmos isso.
A senhora acredita que o Brasil precisa definir uma política lingüística nacional?
Eu entendo que seria isso nos instrumentos políticos, e aí são basicamente da política educacional, que orienta as escolas, e também outros setores que trabalham basicamente com a linguagem. É preciso definir mais claramente essa questão de diferentes dialetos. Por exemplo, uma coisa que se vê na televisão, que exigiria uma política pública de orientação para uso da linguagem, é quando se põe uma novela que se passa na região nordestina do país. E aí os atores cariocas e paulistas são ensinados a falar o dialeto de lá, como se isso fosse possível. Fazem, na verdade, uma caricatura. Uma política lingüística definiria que a televisão não tem que falsear o problema da linguagem usada.
Isso não ocorre apenas na ficção. Os apresentadores e repórteres de telejornais também tem à disposição o trabalho de fonoaudiólogos, que tentam “corrigir” os sotaques regionais.
Houve um momento que se tentou definir no Brasil uma pronúncia padrão. E assumiram a carioca como sendo a pronúncia padrão. Como, nós, paulistas e mineiros, podemos aprender a falar carioca?
Falta, então, um trabalho de divulgação científica da lingüística mais intenso.
Não sei se é o viés da minha área de especialidade, pois eu sou, fundamentalmente, formadora de professores de português, mas o que está faltando é renovar a formação de professores. Os próprios professores de português, que seriam os grandes divulgadores fundamentais, para os alunos e as famílias deles, de uma política lingüística, não são formados para isso. A formação de professores é que é o nosso ponto crítico. E não só nos cursos de professores, mas também nos cursos de vocês, jornalistas. Todas as áreas trabalham com linguagem, oral e escrita. Mas isso não acontecerá para os meus dias, talvez para os seus.
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