segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Navegando no Pará: “Parece que estou sonhando”, diz Maribel, a médica cubana que vai enfrentar o pior IDH do Brasil


Maribéis chegam ao destino depois de uma longa viagem; Melgaço tem o pior IDH do Brasil
BLOG O MURAL: por Dario de Negreiros*, especial para o Viomundo
Pergunta um melgacense às médicas cubanas recém-chegadas à cidade: “Dá pra notar que Melgaço tem o pior Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) do Brasil?”. Depois de um breve silêncio, uma delas afirma, como numa forma delicada de lhe responder sem mentir: “Eu nunca tinha visto uma casa de palafita, antes”.
Viemos todos na mesma embarcação – um grande navio de quatro andares que perfaz a rota Belém-Melgaço em cerca de 18 horas –, partindo da foz do rio Amazonas e descendo pelos encontros das águas marítima e fluvial que compõem o Arquipélago do Marajó.
“Quando vínhamos no barco para cá, eu falei: parece que estou sonhando, é como se fosse um filme!”, diz a médica Maribel Morera Saborit, 44. “Nunca imaginei que iria ver o que estava vendo: as casinhas de madeira à beira do rio, as crianças naqueles barquinhos pequenininhos…”.

De barco, crianças pedem esmola aos turistas
Quando nos aproximamos das estações hidroviárias, crianças em pequenas canoas remam até nós para pedir dinheiro, comida, balas ou o que quer que seja. Um deles, sem aparentar mais de 12 anos, olhando-me levava dois dedos à boca, como quem pede um cigarro. “Eu sei que há muita pobreza no mundo, mas não sabia que aqui havia gente vivendo nessas condições”, continua Saborit.
Na chegada, as médicas são recebidas pelo prefeito Adiel Moura (PP) e juntos caminhamos pela região central da cidade, que já se mostra consideravelmente mais pauperizada do que o município vizinho de Curralinho, minha parada anterior. E, lembremos: em 2010, Curralinho registrou o menor PIB per capita do Brasil.
Aqui em Melgaço, as casas, quase todas de madeira, sem porta nem janelas, têm muitas delas aspecto de abandonadas, muito embora bem se veja o movimento de seus moradores.
O pouco asfalto parece mais atrapalhar do que contribuir com o movimento constante das motos, tal seu estado; automóvel, dizem, há na cidade apenas meia dúzia.
Das ruas de terra levanta uma forte poeira, o que contribui para que sejam frequentes, nos períodos mais secos, os males relacionadas às vias respiratórias.
Quase não há iluminação pública.

Muitas das palafitas têm à sua frente pontes de madeira que fazem as vezes de calçada, entrecortadas por instalações precárias de energia elétrica. Por elas, equilibrando-se como se nada houvesse, vemos passar dezenas de crianças a caminho da escola.
À noite, é neste labirinto que tem de caminhar, na escuridão, quem por ali vive. No ano passado, dizem-me diversos moradores desta rua, um contato acidental com este emaranhado de fios de energia – alguns avançam sobre a ponte, obrigando o pedestre ao contorcionismo – matou uma criança eletrocutada.
“Eu tive a possibilidade de ver, na Venezuela, pobreza extrema”, conta a outra Maribel, a Herrera Hernandez. “Lá há as chamadas ‘invasões’, onde as casas são feitas de qualquer coisa: tábuas, papelão. E há os morros, que são como as favelas. Mas também nunca vi nada como isso.”
Vivendo com menos de R$ 140 por mês, 73% dos cerca de 25 mil habitantes de Melgaço podiam ser classificados como pobres em 2010, enquanto 44%, com renda mensal de R$ 70, eram considerados extremamente pobres.

Chicó, o curandeiro
“O remédio mais caro é a babosa com mel de abelha. Cura asma, bronquite, tuberculose, paralisia e câncer”, diz-me seu Chicó, 70, o curandeiro local. “Bom, depende do tipo de câncer”, pondera. “E tem que descascar a babosa, porque a casca é ácida, faz mal.”
Chicó é filho de Teodora – esta, dizem, uma das mais importantes curandeiras que ali existiram. Com ela, aprendeu a receita dos remédios caseiros que até hoje prepara em suas famosas “garrafadas”.
“Minha mãe foi farmacêutica caseira e, quando perdeu a visão, quem fazia os remédios era eu.” Parteira desde os 12 anos, Teodora, diz Chicó, tinha um dom: com sua oração, as mulheres pariam sem sentir dor.
Pergunto a Maria Lina Moraes, esposa de Chicó, se o dito é verdadeiro. “É verdade. Mas eu sou mãe de 16 filhos, então, quando eu achava que estava com o filho no bucho, já estava com o filho no braço.”
Maria Lina conta que seu irmão, o pedreiro Judeu Moraes, foi levado à curandeira Teodora quando despencou de um açaizeiro, caindo em cima do próprio braço. “Ela colocou uma compressa no braço dele, orou e, quando tirou, saiu um monte de pus e sangue. E ele sarou.”
Chicó ainda se lembra da receita: “Pega a minhoca, torra bem torradinha, mistura com farinha, coloca um pano e enrola no braço quebrado. Sara em quatro ou cinco dias.”

O hospital de Melgaço
Judeu Moraes representa bem a mudança de hábitos pela qual passaram os moradores da cidade nas últimas décadas. Pois foi no hospital, e não na casa de algum curandeiro, que o conheci.
Por coincidência, ele trazia em seus braços, justamente, um garoto que havia caído de um açaizeiro. “Eu não tomo esses remédios caseiros”, afirma o cunhado de Chicó.
“Essas coisas de curandeiro eram mais comuns antigamente”, explica Ricardo Fialho, coordenador-geral do movimento Marajó Forte. “Hoje em dia, quando alguém adoece, o povo leva logo para o hospital”.
Não há, atualmente, nenhum médico fixo na cidade. Dois dos três profissionais que aqui trabalham permanecem 15 dias e o outro, 10. Durante 25 dias, todos os meses, a cidade tem apenas um médico, que tenta se revezar em todos os serviços.
“Quando a gente fica sozinho, aqui, é uma loucura”, diz Anselmo Faria Alvarez, 63, em Melgaço desde janeiro.
Nestas ocasiões, Anselmo se divide entre as emergências do hospital, os atendimentos nas UBSs (Unidades Básicas de Saúde) e, ainda, as consultas aos pacientes do Caps (Centro de Atenção Psicossocial).
A população, é claro, se queixa. “Falta médico. Você tem que chegar 1h da manhã pra ser atendido às 7h”, diz Lúcio Ferreira da Silva, 60, trabalhador rural.

Por falta de médicos, Ruth viaja com as crianças; o estoque de água é usado para fazer suco de açaí
“A criançada, eu nem levo mais aqui em Melgaço. Levo em médico particular, lá em Portel [cidade vizinha]”, conta a vendedora de açaí Ruth Leia Caldas, 37.
Diferente do que vimos em Curralinho, por aqui os funcionários dos postos de saúde e do hospital não reclamam da falta de materiais básicos, como luvas descartáveis, algodão e medicamentos essenciais.

Sebastião teve de viajar de barco até Macapá, com uma sonda, para fazer uma cirurgia
Neste contexto, a chegada das duas cubanas deve provocar um impacto imediato: a partir de agora, os três médicos contratados pela cidade poderão se dedicar exclusivamente ao hospital, o que lhes permitirá reduzir as filas do ambulatório e passar a realizar cirurgias.
“Inicialmente, vamos passar a fazer pequenas cirurgias: cesarianas, hérnias, cirurgias na parte baixa do abdômen”, afirma Anselmo. “Além disso, a presença de médicos fixos na cidade é muito importante.”
Hoje, quem precisa deste tipo de cirurgia deve tomar a “ambulancha” para a cidade de Breves, numa viagem de pouco menos de uma hora. Isso se não for encaminhado para local ainda mais distante.
Se a cirurgia de Ilário Rocha da Silva, 58, pudesse esperar, provavelmente sua hérnia inguinal teria sido operada em Melgaço.
O mesmo talvez se passasse com Sebastião Santos Medeiros, 69, nascido e criado na zona rural de Melgaço, mas que para fazer uma cirurgia de próstata teve de viajar até Macapá. “A viagem foi muito cansativa porque, ainda por cima, colocaram uma sonda em mim”, relata.

Dr. Anselmo: Dois empregos como médico itinerante
O médico Anselmo não faz segredo sobre o motivo que o trouxe para cá: em Belém, trabalhando contratado pelo governo do Estado, recebia mensalmente cerca de R$ 3 mil por 40 horas semanais.
Trabalhando 15 dias em Melgaço e outros 15 em Gurupá, também na região do Arquipélago do Marajó, multiplica esse salário por dez.
Sendo tais os valores de mercado para esta mão-de-obra na região, ficam os municípios pobres impossibilitados de ampliar o número de médicos com seus próprios orçamentos.
Em julho deste ano, os repasses federais e estaduais recebidos por Melgaço somaram, segundo a secretaria de saúde, R$ 250 mil, valor ao qual se pode acrescentar os cerca de R$ 100 mil de contrapartida do município.
Somados todos os encargos, o custo total de contratação de um médico chega perto dos R$ 36 mil. Ou seja: mesmo que, hipoteticamente, a cidade pudesse gastar toda a verba disponível para saúde apenas com a contratação de médicos, não conseguiria bancar nem dez profissionais.
Para alcançar a ainda baixa média brasileira, de 1,8 médico por mil habitantes, Melgaço teria de contar com 45. Já para se equiparar às médias de países como Itália, Alemanha, Portugal e Espanha, que possuem entre 3,5 e 4 médicos por habitante, seriam necessários entre 88 e 100.

Mari e Bel ocupam vagas de médicos brasileiros que não quiseram vir
Além das duas cubanas recém-chegadas, Melgaço ainda pretende receber mais três profissionais nas próximas fases do Mais Médicos.
A intenção é ter quatro médicos trabalhando em equipes de saúde da família e um exclusivamente no Caps. “Vai desafogar bastante o hospital”, comemora com antecipação Ivonete Silva, atual diretora da casa.
Segundo a secretária de saúde de Melgaço, Ângela Iketani, a cidade já havia tentado conseguir médicos pelo Provab (Programa de Valorização do Profissional da Atenção Básica), que oferece aos que se disponibilizam para trabalhar fora dos grandes centros urbanos bolsas de R$ 10 mil mensais e 10% de bonificação em exames de residência.
“Nós nos habilitamos, mas não recebemos nenhum profissional: nem enfermeiro, nem odontólogo, nem médicos”, diz.
Depois, na primeira fase do Mais Médicos, aberta apenas aos brasileiros, mais uma vez não houve ninguém que se habilitasse a vir para cá.

As médicas cubanas e o prefeito
Maribel Herrera Hernandez e Maribel Morera Saborit estão na cidade desde a manhã de sábado e já tiveram, no dia da chegada, a homonímia desfeita. “Você é a Mari”, batiza a secretária de assistência social, Socorro Reis, olhando para Saborit. “E você”, diz, apontando Hernandez, “é a Bel. Tem mais cara de Bel”.
Mari e Bel estão instaladas no centro da cidade, onde ocupam um pequeno apartamento com copa-cozinha, um banheiro e dois quartos com ar-condicionado – item essencial na região.
O espaço faz parte de um corredor de apartamentos térreos: logo ao lado moram as secretárias de saúde e assistência social e, em quartos menores, hospedam-se viajantes eventuais.
Paparicadas todo o tempo por prefeito, secretários e funcionários, elas ainda não parecem completamente à vontade – como é de se esperar de quem chega a um lugar completamente desconhecido.
Vejo-as mais soltas, pela primeira vez, durante um churrasco de domingo. O motivo, creio, é menos a cerveja do que o assunto: a revolução cubana.
Maribel, a Mari, é mais falante, extrovertida, expansiva. Mas, quando se trata deste assunto, mesmo Maribel, a Bel, não se contém: “Dario, vou falar em espanhol, traduza para eles, por favor. Não há ditadura, em Cuba. Se Fidel permaneceu tanto tempo no poder, foi porque quisemos, porque votamos nele”, assegura.
“Antes da revolução, era muito pior”, concorda Mari. “Hoje todas as pessoas têm saúde gratuita e de qualidade, todos têm acesso a ensino de qualidade.”
Concedo-me um aparte, saindo por um momento do papel de tradutor e mediador da discussão, quando se debate religião.
Se as conquistas sociais são inquestionáveis e trazem ganhos de liberdade coletiva, digo direcionando-me aos críticos, tampouco se pode negar a existência de restrições de liberdade individual, pondero com elas.
“Realmente, havia restrições de liberdade religiosa”, concedem. “Mas isso foi, principalmente, no início [da revolução]. Hoje, já melhorou bastante”, respondem-me juntas, intercalando-se.
Enfim, para além de qualquer dúvida, resta a gana com que ambas defendem e exaltam seu país. Nisto incluso, evidente, o sistema de saúde cubano.

As médicas cubanas são apresentadas a moradores de Melgaço
Em Cuba, contam, um especialista em medicina da família – ou, como lá se diz, em medicina general integral– costuma viver no mesmo lugar em que clinica. “No térreo, faz-se as consultas, no andar de cima vive o médico e, acima, a enfermeira”, diz Mari.
“Esse consultório, por sua vez, está ligado a uma policlínica, que tem laboratório, pronto-atendimento, raio-X, vacinação, oftalmologia, endoscopia, ultrassom etc. Isso compõe a atenção primária: uma policlínica e vários consultórios médicos.”
“As pessoas têm tudo isso perto delas. E um médico que trabalha no consultório faz plantão na policlínica”, diz Bel.
Isso significaria, então, que em Cuba um médico da família realiza procedimentos que, no Brasil, são reservados a especialistas?
“Sim. Lá, nós tratamos as patologias próprias de especialidades, como oftalmologia, cardiologia, ginecologia. Falamos com um especialista só quando temos alguma dúvida”, confirma Bel. E Mari acrescenta: “Aqui, muitas vezes vamos nos sentir de mãos atadas”.
Em Melgaço, estará no trabalho preventivo o foco de suas atuações. “Aqui, o maior esforço será o de promoção de saúde: mudar hábitos, mudar ideias”, diz Bel.
“Nós temos de construir formas de atuação sobre estes problemas para obter resultados. Sabemos, por exemplo, que aqui as pessoas são muito religiosas. Então, eu já disse: nós vamos falar com os pastores”, afirma Mari. “Nós temos de encontrar essas brechas, descobrir por onde podemos nos colocar.”
Conversando com duas mães que, voluntariamente, deixaram suas casas para morar em uma cidade tão pobre e tão distante, é inevitável que questionemos a dimensão da recompensa financeira que será obtida a partir deste trabalho.
Ficou na bela cidade de Cienfuegos, conhecida como La Perla del Sur, a família de Bel — uma adolescente de 15 anos e um menino de 5, além de seu marido. O marido e os dois filhos de Mari, de 19 e 18 anos, moram na capital Havana.
Por um lado, a recompensa é relevante, dizem-me; mas, por outro, elas garantem que o salário que recebem em Cuba lhes é plenamente satisfatório.
“O salário básico de um médico, em Cuba, é de 573 pesos cubanos (aproximadamente R$ 53). Depois, se você tem mestrado, categoria docente etc., vai subindo”, explica Bel.
“Quando o convertemos em dólares (US$ 24), talvez seja muito pouco – ou pensem vocês que é muito pouco. Mas, para nós, supre todas as nossas necessidades, especialmente se considerarmos como são os preços em Cuba.”

Para tratar a água, Melgaço depende do governo federal
Melgaço já teve aprovados pelo Ministério da Saúde outros dois pleitos relevantes: a construção de mais três UBSs, no valor de R$ 408 mil cada, e a concessão da verba para construção de uma Unidade Básica Fluvial, com custo de R$ 1,6 milhão.
É a respeito das estratégias de captação de novos recursos, capazes de manter funcionando os equipamentos de saúde vindouros, que converso com o prefeito Adiel Moura.
“Nós temos uma horta da prefeitura, que está à disposição de algumas famílias, e temos outros agricultores fazendo abacaxi, maracujá”, conta. “Também tem um pessoal que tá criando peixe. É a prefeitura que entra com toda a infraestrutura, dá os insumos etc.”

Aldrin e os tambaquis: fartura
Para quem visita a horta, as plantações e os tanques de peixe, fica claro se tratar de um trabalho incipiente. Com seus 30 mil tambaquis espalhados por sete tanques, os ganhos do piscicultor da cidade, Aldrin de Souza, oscila, segundo ele, entre R$ 10 mil e R$ 20 mil anuais.
Melgaço tem uma renda per capita de R$135, o que corresponde a apenas 17% da média nacional, de R$ 793,87. Ainda que, individualmente, a renda de Aldrin esteja muito acima da média de seus conterrâneos, ela é evidentemente incapaz de aumentar significativamente a arrecadação do município.
A gestão atual da prefeitura, apesar de já estar em seu segundo mandato, quando questionada sobre alguns dos maiores problemas da cidade tem pouco mais a mostrar do que meros projetos.
Não há, em Melgaço, qualquer tipo de tratamento da água utilizada. Sobre isso, diz o prefeito Adiel, há um projeto, com verba federal, cujas obras têm o início previsto para novembro.
Banheiros com fossas sépticas são, por ali, raridade. Nos seus quase cinco anos de gestão, a prefeitura construiu pouco mais de trinta, numa média de apenas seis banheiros por ano. Detalhe: sequer as fossas foram feitas.
“É muito pouco”, confessa Adiel, que diz pretender chegar à marca de 66 banheiros construídos, com as fossas devidamente instaladas.
Sobre o asfaltamento das ruas de terra, atualmente uma das maiores responsáveis pela poeira causadora de problemas respiratórios, o prefeito afirma que o governo paraense “está sinalizando” com a construção de 3 km de vias asfaltadas. “Mas isso demora a acontecer, né? E é pouco, é pouco.”
Enquanto tais projetos não se concretizam, o programa social mais relevante para Melgaço, sem sombra de dúvidas, é o Bolsa Família.
Segundo a secretária de assistência-social, Socorro Reis, mais de 21 mil dos 25 mil habitantes da cidade já recebem o benefício. “Com o Bolsa Família, o dinheiro começou a circular no município”, diz. “O impacto? O impacto… Deus te livre! É visível. Os comércios cresceram, foi abrindo de tudo: loja de roupa, loja de tudo o que você possa imaginar.”
Apesar da morosidade da administração municipal, nos últimos três anos aconteceram alguns avanços relevantes.
Em 2010 – quando foram colhidos os dados que deram a Melgaço a última colocação no ranking de IDHM brasileiro –, a mortalidade infantil era de 22,4 a cada mil crianças nascidas, 34% maior do que no resto do país. Em 2011, foi reduzida para 18,63 e, em 2012, para 15,52 – 7% a menos do que a média nacional.
Assim como em Curralinho, onde não encontramos qualquer empresa instalada, a prefeitura de Melgaço é também a única empregadora da cidade.
“A gente briga há muito tempo para aumentar o valor dos repasses do governo federal”, diz Ângela, a secretária de saúde. “Mas não adianta vivermos só de repasses. O município tem de ter uma estratégia de arrecadação própria.”
Além das cubanas Mari e Bel, Melgaço terá quatro unidades de saúde a mais – incluindo a unidade fluvial – e tem, ainda, a perspectiva de receber outros três médicos.
Se hoje é só com muito esforço que a prefeitura consegue suprir a demanda existente por materiais essenciais e medicamentos, a ampliação da rede exigirá, obrigatoriamente, o aumento da receita. Sob o risco de ver desperdiçados os investimentos e o baixíssimo índice de desenvolvimento humano, perpetuado.

Mari brinca com um futuro paciente. Foco no trabalho preventivo faz sentido: água consumida em Melgaço não tem tratamento

* O repórter Dario de Negreiros viajou financiado pelos leitores do Viomundo, aos quais agradecemos por nos proporcionar esta série de reportagens.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Edinho Silva: Pedágios paulistas dão lucro líquido anual de 30%



Política de pedagiamento do PSDB limita desenvolvimento do interior

BLOG O MURAL: As cidades do interior paulista são as maiores penalizadas com a política de pedagiamento imposta pelas sucessivas administrações do PSDB no estado.
É preocupante o crescente esvaziamento econômico e até mesmo populacional de algumas regiões ocasionado pela falta de planejamento e de visão estratégica  do governo do estado. Não há dúvidas que o fator “pedágio” tem grande peso nisso.
As altas tarifas de pedágios praticadas nas rodovias paulistas inibem não só a locomoção interestadual, como de trabalhadores e estudantes, mas também a atração de empresas e indústrias que têm a logística como algo fundamental na planilha de custos.  Hoje, a logística no sistema produtivo é tão importante quanto a matéria-prima e a mão de obra.
Se não repensarmos a política de pedagiamento, os grandes investimentos vão continuar concentrados na grande São Paulo e região da Baixada Santista que são duas grandes portas para escoamento da produção. Dessa forma, o interior vai perder cada vez mais espaço na sua capacidade de competir na atração dos investimentos.
Recentemente, em mais um equívoco, o governo de São Paulo aproveitou a onda de manifestações de junho para fazer proselitismo político não aumentando o valor da tarifa, mas passando a cobrar dos eixos suspensos, representando custo ainda maior para transportadoras e caminhoneiros que trabalham como autônomos. É um desembolso que pesa para empresas e profissionais do setor, aumentando o custo logístico estadual e do país.
Mesmo sem o reajuste da tarifa, a conta ficou mais cara para quem usa a estrada para transportar carga, a riqueza do setor produtivo paulista e brasileiro. O governo penalizou quem deveria ter o custo do transporte reduzido.
O transporte rodoviário de carga representa 87% da movimentação de mercadoria (commodities e industrializados) no Brasil. Importante saber que boa parte desse custo é repassado ao varejo, portanto, é a sociedade quem paga.
O governo do estado deveria rever o modelo de concessão – Alckmin prometeu durante a campanha eleitoral de 2010, mas nada foi feito até o momento. Os contratos foram elaborados na década de 90, ou seja, em outra conjuntura econômica do Brasil.
Nesse período, o país lutava pela estabilidade econômica, havia outra lógica de remuneração do processo inflacionário e o risco Brasil estava alto. Hoje, a conjuntura brasileira, econômica e social é outra. É preciso apresentar uma nova proposta ao povo paulista.
No modelo superado de concessão, aproximadamente 67% das rodovias estaduais paulistas usam o IGPM como indexador para correção das tarifas anualmente e o restante usa o IPCA.
De junho de 1998 até maio de 2013 a variação do IGPM foi de 248%, enquanto para o IPCA foi de 152%. Assim, se tivessem optado pelo IPCA, a tarifas das rodovias concedidas em 1998 seriam 38% mais baratas.
A Taxa Interna de Retorno – TIR – usada em cerca de 70% das concessões paulistas é em média de 20%. Isso porque quando houve a concessão, em 1998, o país passava por uma grave crise econômica no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e a taxa de juros era alta.
Para tornar o modelo atraente deram “esse prêmio” alto às concessionárias que exploram as rodovias. O resultado é a transferência de renda do usuário para empresas. A receita com pedágios superou os R$ 7 bilhões em 2012 e o lucro líquido tem ultrapassado os 30% anualmente.
A prova de que é possível fazer concessão de rodovias sem cobrar pedágios elevados foi dada pelo governo federal. O governo Lula fez concessão da Fernão Dias e a concessionária investe na duplicação e modernização da estrada, mas o custo do pedágio para ir de São Paulo a Belo Horizonte é três vezes menor do que o que se gasta para ir de São Paulo a Araraquara.
Além disso, o governo Lula enfrentou o problema da infraestrutura logística no país, uma demanda histórica, criando o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), que destinou bilhões de reais nas rodovias, abertura de novas hidrovias, reforma, ampliação e modernização de portos e aeroportos.
Ainda no último mês de agosto o governo Dilma lançou a primeira etapa do Programa de Investimentos em Logística, com previsão de destinar R$ 133 bilhões para a reforma e construção de rodovias federais e ferrovias. Desse total, R$ 42,5 bilhões devem ser aplicados na duplicação de cerca de 5,7 mil quilômetros de rodovias, incluindo os principais eixos rodoviários do país. Outros R$ 91 bilhões serão investidos na reforma e construção de 10 mil quilômetros de ferrovias ao longo dos próximos 25 anos.
O Governo Federal tem mostrado que é possível enfrentar o problema da modernização das nossas estradas e do sistema de transporte sem onerar de forma injusta a sociedade.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Crianças sem identidade, o trabalho infantil na produção de castanha de caju

BLOG O MURAL: Meninos e meninas têm as mãos queimadas por ácido e perdem digitais na quebra da castanha do caju. Mesmo após denúncias, problema persiste no Rio Grande do Norte
20/09/2013
Daniel Santini
Olhe a ponta do seu dedo. Repare no conjunto minúsculo de linhas que formam sua identidade. Essa combinação é única, um padrão só seu, que não se repete. As crianças que trabalham na quebra da castanha do caju em João Câmara, no interior do Rio Grande do Norte, não têm digitais. A pele das mãos é fininha e a ponta dos dedos, que costumam segurar as castanhas a serem quebradas, é lisa, sem as ranhuras que ficam marcadas a tinta nos documentos de identidade.
O óleo presente na casca da castanha de caju é ácido. Mais conhecido como LCC (Líquido da Castanha de Caju), esse líquido melado que gruda na pele e é difícil de tirar tem em sua composição ácido anacárdico, que corrói a pele, provoca irritações e queimaduras químicas. No vilarejo Amarelão, na zona rural de João Câmara, as castanhas são torradas – além de corroer a pele, o óleo é inflamável – e quebradas em um sistema de produção que envolve famílias inteiras, incluindo as crianças.
Com a pele cada vez mais lisa, as pontas dos dedos perdem as digitais, e as linhas e traços de identidade se esfacelam. Fotos Daniel Santini/Repórter Brasil
O óleo é pegajoso. Basta pegar uma castanha e quebrá-la para ficar com a pele manchada por alguns dias. Nem todas as crianças e os adultos que trabalham no processo sabem que o óleo é ácido. Muitos acham que a mão fica assim machucada por conta da água sanitária utilizada para tirar o preto encardido da mão depois de horas seguidas manuseando e quebrando as castanhas torradas.
“Se fosse assim, as pessoas que usam água sanitária para limpeza estariam roubadas! É o óleo LCC que tem uma ação irritante, ele é cáustico, produz lesões e chega a retirar as digitais”, explica o médico Salim Amed Ali, autor de diferentes estudos sobre doenças ocupacionais para a Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro), do Ministério do Trabalho e Emprego.
A perda da identidade não é permanente. Com o tempo, as digitais voltam se a pessoa se afastar da atividade.
Sobrevivência
O médico fez pesquisas específicas sobre a saúde de trabalhadores de unidades industriais de processamento de castanhas de caju e diz que a atividade pode ser considerada insalubre. No caso em questão, em que a produção é totalmente artesanal e as famílias dependem do trabalho para sobreviver, ele destaca quão contraditória é a situação.
“A subsistência está calcada em condições de trabalho inviáveis. Para viver, o sujeito precisa se submeter a condições inaceitáveis e as crianças acabam sacrificadas. Não dá para aceitar isso em pleno século 21”, afirma.
O emprego de crianças na quebra da castanha de caju está incluído na lista de piores formas de trabalho infantil, ao lado de atividades como beneficiamento do fumo, do sisal e da cana-de-açúcar. A situação a que estão submetidas as crianças de João Câmara (RN) não chega a ser novidade. A auditora fiscal do trabalho Marinalva Cardoso Dantas, coordenadora do Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho da Criança e de Proteção ao Adolescente Trabalhador, tem realizado sucessivas ações de fiscalização, denunciado a situação e cobrado soluções.
“Não dá para aceitar que as crianças continuem nessa situação, mas não basta reprimir, é preciso oferecer alternativas”.
Além de identificar as crianças e reunir informações para relatório a ser entregue ao Conselho Tutelar da cidade, ela também tem procurado cobrar providências por parte da prefeitura sobre a situação das famílias. Os programas sociais são considerados insuficientes pelos moradores, que reclamam da atuação do poder público.
“Sabemos do que está acontecendo, mas até agora não conseguimos avançar”, admite Maria Redivan Rodrigues, secretária de Assistência Social e primeira-dama de João Câmara, que promete solucionar o problema em um ano, até setembro de 2014. 
O Brasil se comprometeu a erradicar as piores formas de trabalho infantil até 2015, mas, mesmo com denúncias, situações com a de João Câmara persistem.
Em 24 de fevereiro de 2012, o promotor Roger de Melo Rodrigues, do Ministério Público Estadual, abriu o Inquérito Civil nº 06.2012.00003777-7 após denúncias.
“Ele disse que ia processar as famílias, tentou proibir as pessoas de trabalhar, deixou todo mundo apavorado. Foi muito ruim”, diz Ivoneide Campos, presidente da Associação Comunitária do Amarelão.
“A fumaça faz mal, a gente sabe, mas as famílias não querem mudar o método com que sempre trabalharam. E não adianta forçar, tem de transformar em querer, ajudar na busca de alternativas”, defende.
Procurado para comentar a reclamação, o promotor negou, em nota, que sua atuação tem sido meramente repressiva. Ele diz que “os problemas relacionados à queima de castanha, tais como impacto ambiental, danos à saúde dos moradores e trabalho infantil, não têm passado desapercebidos do Ministério Público Estadual” e que “em vez de buscar a repressão de delitos relacionados ao caso, esta Promotoria tem priorizado o diálogo com a respectiva comunidade, já havendo sido realizadas duas reuniões no local com todos os interessados e representantes de órgãos municipais, estaduais e federais, objetivando a construção de um consenso para solucionar o caso”.
O promotor reclama, porém, que embora “busque uma resposta adequada e legítima aos problemas, tem enfrentado alguma resistência relacionada ao costume já enraizado, da parte de algumas famílias locais, de proceder à queima de castanhas ao alvedrio dos respectivos danos decorrentes, o que não impedirá uma atuação isenta e efetiva para a resolução do caso”.
Potiguar
Entre as famílias que dependem do processamento de castanhas de caju para sobreviver estão as de um assentamento localizado na região de índios Potiguar, um dos poucos núcleos remanescentes dessa etnia que no passado povoou o estado inteiro. Os ganhos são mínimos. A castanha crua é comprada de pequenos produtores da região de Serra do Mel. Um saco de 50 kg rende, em média, 10 kg de castanha processada. As famílias contam que ganham de R$ 30 a R$ 100 por semana, vendendo a produção a intermediários que revendem em feiras e mercados de cidades.
Assim que as castanhas estão torradas, as mãos se levantam; pancadas quebram uma noz, depois outra e outra, e outra
“Tentamos identificar quem lucra com isso, mas é um sistema muito primitivo. As indústrias organizaram a produção e estão processando diretamente as castanhas, não identificamos nenhuma envolvida. Os intermediários são pequenos comerciantes que adquirem o produto diretamente com as famílias”, explica o auditor fiscal José Roberto Moreira da Silva.
Criatividade na busca por soluções para as famílias não falta. Nilson Caetano Bezerra, do Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho da Criança e de Proteção ao Adolescente Trabalhador Aprendiz, por exemplo, sonha em fazer parcerias com as empresas de produção de energia eólica, que fazem multiplicar o número de torres de geração na região, para empregar adolescentes como aprendizes. E em providenciar máquinas para que os adultos não tenham de manusear as castanhas torradas. Experiências com mecanização já aconteceram, mas o descasque manual ainda é o preferido porque a taxa de desperdício é menor.
Em fevereiro, o juiz Arnaldo José Duarte do Amaral, titular da 9ª Vara do Trabalho de João Pessoa, visitou a comunidade e também encontrou as crianças trabalhando na produção de castanhas. Ele escreveu um artigo sobre a questão e, desde então, tenta articular soluções e envolver mais interessados em resolver o problema.
“Quando estive lá como juiz, me perguntavam se ia prender alguém. Não é esse o papel do judiciário, o objetivo não é prender ninguém, é achar solução”, diz, defendendo a formação de cooperativas e mecanismos de economia solidária como o melhor caminho para erradicar o trabalho infantil e melhorar a condição de trabalho dos adultos. “A gente tenta corrigir essas questões há séculos, sem sucesso. Não bastam ações repressivas, que vão além de tentar punir.”

domingo, 22 de setembro de 2013

O jogo começa a virar

BLOG O MURAL: Via blog do TijolaçoMensalão


A farsa do mensalão está fazendo água, apavorando a mídia com a possibilidade de uma histórica e talvez definitiva derrota política.
Ela perdeu várias batalhas recentes na opinião pública, mas até o momento tinha orgulho de manter ao menos um grande trunfo: o mensalão é visto pela maioria dos brasileiros como um sujo escândalo de corrupção, que merece terminar em duras condenações.
Esse é um tipo de manipulação relativamente fácil de fazer, desde que se não tenha escrúpulos em manipular a tendência natural da população de achar que “todo político é corrupto” e que todos, portanto, são culpados, até prova em contrário.
A mídia explorou também o preconceito de classe das elites dirigentes e dos estamentos superiores contra o PT. Estamento é um termo sociológico muito usado por Raymundo Faoro para designar a elite do serviço público. Aliás, não consigo esquecer o fato de Roberto Gurgel, então procurador-geral da República, ter iniciado a sua acusação lembrando a justa denúncia de Faoro contra o histórico patrimonialismo brasileiro. Mas Gurgel inverteu a teoria de Faoro. Em seu clássico Os Donos do Poder, Faoro explica como o advento da república e a institucionalização progressiva das atividades públicas fez emergir uma nova elite: os estamentos, ou seja, a burocracia. Era o coronelismo político que tentava manter seu prestígio e poder mediante a ocupação dos cargos públicos. O patrimonialismo mais nocivo, portanto, era aquele praticado pelos servidores, em especial aqueles não filtrados pelo voto. Juízes, promotores, auditores, militares, passavam a usar seu poder, que deveria ser republicano, em prol das elites. Faoro prevê a radicalização desse tipo de patrimonialismo, e com isso, previu, de certa maneira, o golpe militar de 64, que nada mais foi que um golpe patrimonial de servidores públicos, liderados por militares. O engajamento ideológico, quase histérico, de Gurgel – e antes dele, de Antônio Fernando de Souza – no esforço para condenar, mesmo sem provas, os réus da Ação Penal 470, inscreve-se, portanto, na tradição patrimonial brasileira de usar um cargo público em tese não-político, para defender uma posição ideológica e política que interessa a determinados grupos de poder.
Por isso a mídia apostou tão alto contra os embargos infringentes. Ela já intuía que o jogo estava virando. As críticas à Ação Penal 470 emergem de todo o lado, e não apenas de setores identificados ideologicamente com o PT.
Semana passada, li uma nota dizendo que Ricardo Lewandowski, na quarta-feira à noite, após o voto de Celso de Mello, foi recebido com uma salva de palmas num restaurante em Brasília. Ele mesmo admitiu que estava estupefato, porque, até então, só apanhava.
A entrevista de Ives Gandra publicada hoje na Folha (e já comentada aqui), por sua vez, cai como uma bomba atômica no colo da grande mídia, porque Gandra é um ícone, um semideus, do conservadorismo e do antipetismo, em matéria penal, constitucional ou jurídica. Gandra é um clássico.
Vejam o título da entrevista de Gandra à Folha, publicada hoje com destaque:
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Isso é um escândalo!
Um escândalo ainda maior que o mensalão em si, porque se o mesmo correspondeu a um grave crime de caixa 2, a Ação Penal 470, ao condenar, sem provas, uma das maiores lideranças da resistência democrática, integrou uma tentativa de golpe político. Com apoio, engajado ou pusilânime, de boa parte dos ministros do STF!
Conforme publicamos aqui, respeitado constitucionalista e agora membro do Conselho do Ministério Público, o Dr. Luiz Moreira, vai bem mais longe e acusa duramente a Ação Penal 470 de ser uma “peça de ficção”.
A sociedade brasileira está começando a reagir, portanto, com dureza, a mais essa tentativa espúria de setores da elite, aos quais seria até um elogio chamar de “conservadores”, visto que eles se mostraram abaixo até do conservadorismo, de atropelar o Estado Democrático de Direito para derrotar seus adversários  políticos.
Alguns jornais, como a Folha, já identificaram esse movimento de virada e estão tentando se descolar do golpismo exagerado da Globo.
A Folha de hoje dá várias matérias que podem ser consideradas “meia-culpas”. Além da entrevista com Ives Gandra, há um artigo de Fabio Wanderley Reis, no qual o cientista político de 75 anos, doutor por Harvard, faz uma denúncia gravíssima. Segundo ele, “o velho viés da Justiça respalda a hipótese de lhe ser mais fácil julgar severamente um partido com o perfil do PT do que outros”. E arremata: “Se a severidade, que alguns temem ter sido comprometida pelos embargos infringentes, vier a resultar em que se transformem em jurisprudência efetiva os padrões rigorosos exibidos até agora, teremos avançado por linhas tortas”.
Ou seja, com sua linguagem acadêmica, Reis também denuncia severamente a manipulação da Justiça em detrimento de alguns partidos.
E não termina aí. A Ombudsman da Folha, Suzana Singer, tenta descolar o jornal do clima de derrotismo sombrio no qual mergulharam a maioria dos grandes jornais. Singer apela, contudo, para uma falsa simetria e termina com um orientalismo de R$ 1,99 ao afirmar que a verdade está “em algum lugar no meio do caminho”.
Nem sempre, Suzana.
Salomão ensinava que fazer justiça não é cortar o bebê pela metade.
Por: Miguel do Rosário

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

‘A medicina brasileira é branca e classe média’

BLOG O MURAL:  A visão de uma blogueira negra sobre os médicos do país.
Tente encontrar negros entre os estudantes de medicina no Brasil
Tente encontrar negros entre os estudantes de medicina no Brasil
O texto abaixo, de Mara Gomes, foi publicado originalmente no site Blogueiras Negras.
A medicina é uma das mais requisitadas e importantes profissões existentes no mundo. Por isso, é preciso ter um grande conhecimento para se tornar médico, uma coisa alcançada com longos anos de estudo.
Para conseguir cursar medicina no Brasil é necessário um conhecimento escolar de qualidade — adquirido, principalmente, em escolas particulares e cursinhos caríssimos.
Nossos médicos são formados, em sua maioria, por uma classe particular de pessoas. Pessoas que possuem um bom dinheiro, estudam em escolas particulares requisitadas, tiveram as melhores oportunidades e viveram uma vida abastada sem muitos problemas financeiros.
São raros os médicos que não vieram desse grupo. Não são todos, é claro, mas se trata da grande maioria. Esse grupo vive em um mundo à parte.
São pessoas que digerem e espalham informações burras da mídia racista e classista. Não entendem os problemas dos menos favorecidos, adoram colocar seus pontos de vista como se fossem os centrais em toda e qualquer discussão de minorias, acham cotas desnecessárias e injustas e dizem que o bolsa família é esmola para acomodar pobre.
Quem nunca encontrou um desses por aí, não é? Encontrei muitos na universidade, psicólogos e futuros psicólogos. E, pior, já até encontrei em postos de saúde. Duvido que alguém que frequenta os postos de saúde não tenha tido o mesmo contato.
Lembra aquele doutor(a) que sem olhar você no rosto demorou menos que 5 minutos para criar um “diagnóstico”? Para eles nós somos clientes e não pacientes.
Será que nos consideram “pessoas”? Porque a nossa medicina deixou de ser humanizada faz tempo. Para muitos médicos não existem pessoas, existe um grande negócio.
Essa é a classe que nos atende nos postos, e não se trata só de médicos. Pessoas assim também estão por trás da grande mídia, e são elas que ditam o que é certo e o que é errado.
Sim, isso é assustador, somos controlados pela grande classe média brasileira. No último dia 27 de agosto, vimos o que uma parte dessa corja de sábios ignorantes fez: chamaram médicos cubanos de escravos em sua chegada ao aeroporto de Fortaleza.
Para eles, a regra foi quebrada. É ofensivo ver um médico que não possua o porte hegemônico  — o homem branco, classe média com “cara de médico”. O que veio de Cuba foram médicas com “cara de empregada doméstica”: como lidar com isso?
Mas o que é ter cara de empregada doméstica? O que é ter cara de médico? O Brasil tem tantos médicos brancos e empregadas negras que isso acaba entrando para um padrão – que, infelizmente, a classe média usa para classificar todos.
Há sim uma injustiça acontecendo aí e isso é uma questão não só de xenofobia, mas de racismo institucional. A regra foi quebrada e a classe médica ficou enfurecida. Sabemos que eles não estão perdendo empregos. Não um caso de direitos trabalhistas. É algo mais forte que isso e é cego quem não quer ver.
Recentemente a Universidade Federal da Bahia formou uma turma de médicos na qual só 3 ou 4 eram negros. Isso não faz sentido se a Bahia abriga, de acordo com o IBGE, uma população de 70% de negros.
A situação não muda em outros estados brasileiros.  Numa favela, quantas pessoas estudam medicina, ou pelo menos têm a esperança real de poder um dia se tornar médico?
Como afirmou Cintia Santos Cunha, estudante brasileira negra da Universidade de Ciências Médicas  de Havana: “No Capão Redondo, ninguém sonha ser médico”.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Os carros oficiais de Alckmin, Afif e secretários custam R$ 142,4 mil por mês

BLOG O MURAL: Os carros "placas pretas" do alto escalão do governo paulista são classificados como "Grupo A". Do tipo sedã, cor preferencialmente preta e numa versão de luxo da linha. Juntos, os 30 veículos custam todo mês, em média, R$ 142.446,33 aos cofres públicos. 

A gestão Geraldo Alckmin (PSDB) forneceu à sãopaulo neste mês a despesa com veículos oficiais do governador e de seus 26 secretários. Foi a segunda tentativa. Na primeira, em julho, os dados não foram repassados. Ao contrário de prefeitura, vereadores e deputados estaduais --que abriram seus valores, revelados nareportagem de capa da edição de 11/8 da revista

No governo, a maioria da frota é alugada. Há os que custam R$ 2.100 por mês (fora o etanol), como o Jetta utilizado pela secretária da Justiça, Eloisa Arruda. Ou R$ 13,5 mil. É o caso de Rodrigo Garcia, de Desenvolvimento Econômico --o contrato para seu Corolla inclui combustível, motorista e manutenção. 

O governo alega motivos de segurança para não divulgar os modelos dos secretários de Segurança, Fernando Grella, e de Administração Penitenciária, Lourival Gomes. Eles dispõem de dois veículos cada --um deles, comprado em 2009 por R$ 98,5 mil. 

O carro que atende a Alckmin custa mensalmente R$ 3.100, além do combustível. A primeira-dama, dona Lu, e os filhos dele têm direito ao benefício, assim como familiares do vice-governador, Guilherme Afif (PSD). Na Folha

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Sou trepadeira: gozar não é privilégio masculino

Por : 
A autora
A autora
BLOG O MURAL:  O texto abaixo é uma condensação de um artigo  escrito por Danielle Anatólio e publicado no site Blogueiras Negras.
Emicida é um rapper, eu disse rapper, que fez uma música cheia de violência contra a mulher negra: “Essa nega é trepadeira, devia era levar uma surra de espada de São Jorge’’ Depois ele se desculpou assim: ”É apenas uma música, é ficção e poesia.”
Poesia? Música? Arte? Não há poesia, teatro, música, dança ou arte alguma que justifique o preconceito e violência contra o outro. Eu, em meus trabalhos artísticos, tenho enorme cuidado e respeito no que proponho, faço, penso e represento, isso porque estou fazendo também para o outro e porque sei que naquele momento, em cena, eu sou referência.
”Dei todo amor, tratei como flor, mas no fim era uma trepadeira. Mamãe olhou e me disse: isso aí é igual trevo de três folhas, quer comer, come, mas não dá sorte. Devia era levar uma surra de espada de São Jorge”, diz a letra. Para mim é, sim, violenta, agressiva, desrespeitosa para com a mulher, especialmente porque nesta letra, segundo as características que o músico expressa, é uma mulher negra.
Outro dia na escola em que trabalho uma aluna apanhou dos colegas (meninas e meninos) porque foi considerada ‘trepadeira’. Isso porque ela teve maturidade e independência ao assumir que transou com um rapaz e depois não quis continuar a relação com ele, iniciando nova relação com outra pessoa.
Músicas como esta de Emicida só contribuem para este tipo de mentalidade e desvalorização da mulher. Ela é tão machista quanto algumas de Zeca Pagodinho, como, por exemplo, Faixa Amarela: ”Eu quero presentear a minha linda donzela, não é prata nem é outro, é uma coisa bem singela. Mas se ela vacilar vou dar um castigo nela. Vou lhe dar uma banda de frente, quebrar cinco dentes e quatro costelas.’’
E é tão racista quanto certa música de Tiririca: “Essa nega fede, fede de lascar. Bicha fedorenta, fede mais que gambá.”
Estamos caminhando para onde? Estamos consagrando o racismo e machismo? Ah pois! Este tipo de violência (que nem todo mundo enxerga, ou melhor, não quer enxergar) me fez também lembrar que, em minha infância, Xuxa e sua  trupe, em suas músicas e filmes, violentaram meus sonhos ao me dizer que eu, menina negra, não poderia ser paquita, não poderia ser atriz.
Ao fim de sua justificativa, Emicida responde às mulheres afirmando: ”Mulheres, estamos do mesmo lado”.
Não, não estamos mesmo. O lado em que estou é o que luta pela dignidade da mulher negra. O meu lado não reforça o machismo já existente; o meu lado não pode justificar o preconceito usando para isso licença poética.
Sou trepadeira: gozar não é privilégio masculino.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Gushiken, a mídia e a justiça: uma parábola do país que temos

BLOG O MURAL: O que os anos recentes de um dos grandes líderes sindicais das décadas de 1970 e 1980 contam sobre o Brasil de hoje.

 por : 
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Este texto foi escrito 4 dias antes da morte de Luiz Gushiken
Montaigne escreveu que o tamanho do homem se mede na atitude diante da morte, e citava como exemplos Sócrates e Sêneca.
Os dois morreram serenamente consolando os que os amavam. Sócrates foi obrigado a tomar cicuta por um tribunal de Atenas e Sêneca a cortar os pulsos por ordem de Nero.
Meu pai jamais se queixou em sua agonia, e penso sempre em Montaigne quando me lembro de sua coragem diante da morte, confortando-nos a todos.
Me veio isso ontem à mente ao ler no twitter a notícia de Luís Gushiken morrera aos 63 anos. Depois desmentiram, mas ficou claro que ele vive seus dias finais num quarto do Sírio Libanês, com um câncer inexpugnável.
Soube que ele mesmo se ministra a morfina para enfrentar a dor nos momentos em que ela é insuportável, e para evitar assim a sedação.
Li também que ele recebe, serenamente, amigos com os quais fala do passado e discute o presente.
A força na doença demonstrada por Gushiken é a maior demonstração de grandeza moral segundo a lógica de Montaigne, que compartilho.
Não o conheci pessoalmente, mas é um nome forte em minha memória jornalística. Nos anos 1980, bancário do Banespa, ele foi um dos sindicalistas que fizeram história no Brasil ao lado de personagens como Lula, no ABC.
Eu trabalhava na Veja, então, e como jovem repórter acompanhei a luta épica dos trabalhadores para recuperar parte do muito que lhes havia sido subtraído na ditadura militar.
Os militares haviam simplesmente proibido e reprimido brutalmente greves, a maior arma dos trabalhadores na defesa de seus salários e de sua dignidade. Dessa proibição resultou um Brasil abjetamente iníquo, o paraíso do 1%.
Fui, da Veja, para o jornalismo de negócios, na Exame, e me afastei do mundo político em que habitava Gushiken.
Ele acabaria fundando o PT, e teria papel proeminente no primeiro governo Lula, depois de coordenar sua campanha vitoriosa.
Acabaria deixando o governo no fragor das denúncias do Mensalão. E é exatamente esta parte da vida de Gushiken que me parece particularmente instrutiva para entender o Brasil moderno.
Gushiken foi arrolado entre os 40 incriminados do Mensalão. O número, sabe-se hoje, foi cuidadosamente montado para que se pudesse fazer alusões a Ali Babá e os 40 ladrões.
Gushiken foi submetido a todas as acusações possíveis, e os que o conhecem dizem o quanto isso contribuiu para o câncer que o está matando.
Mas logo se comprovou que não havia nada que pudesse comprometê-lo, por mais que desejassem. Ainda assim, Gushiken só foi declarado inocente formalmente pelo STF depois de muito tempo, bem mais que o justo e o necessário, segundo especialistas.
Num site da comunidade japonesa, li um artigo de um jornalista que dizia, como um samurai, que Gushiken enfim tivera sua “dignidade devolvida”.
Acho bonito, e isso evoca a alma japonesa e sua relação peculiar com a decência, mas discordo em que alguém possa roubar a dignidade de um homem digno com qualquer tipo de patifaria, como ocorreu. A indignidade estava em quem o acusou falsamente e em quem prolongou o sofrimento jurídico e pessoal de Gushiken.
O episódio conta muito sobre a justiça brasileira, e sobre, especificamente, o processo do Mensalão. A história há de permitir um julgamento mais calmo, e tenho para mim que o papel do Supremo será visto como uma página de ignomínia.
Gushiken não foi atropelado apenas pela justiça. Veio, com ela, a mídia e, com a mídia, o massacre que conhecemos.
Um caso é exemplar.
Uma nota da seção Radar, da Veja, acusou Gushiken de ter pagado com dinheiro público um jantar com um interlocutor que saiu por mais de 3 000 reais. A nota descia a detalhes nos vinhos e nos charutos “cubanos”.
Gushiken processou a revista. Ele forneceu evidências – a começar pela nota e por testemunho de um garçom – de que a conta era na verdade um décimo da alegada, que o vinho fora levado de casa, e os charutos eram brasileiros.
Mais uma vez, uma demora enorme na justiça, graças a chicanas jurídicas da Abril.
Em junho passado, Gushiken enfim venceu a causa. A justiça condenou a Veja a pagar uma indenização de 20  mil reais.
O tamanho miserável da indenização se vê pelo seguinte: é uma fração de uma página de publicidade da Veja. Multas dessa dimensão não coíbem, antes estimulam, leviandades de empresas jornalísticas que faturam na casa dos bilhões.
Não vou entrar no mérito dos leitores enganados, que construíram um perfil imaginário de Gushiken com base em informações como aquela do Radar. Também eles deveriam ser indenizados, a rigor.
Gushiken enfrentou, na vida, a ditadura, as lutas sindicais por seus pares modestos, a justiça e a mídia predadora.
Combateu o bom combate.