quinta-feira, 12 de março de 2009

A tragédia (agora esquecida) de Blumenau continua

BLOG DO U: Ao ler essa carta no Blog do Azenha fiquei triste. por Urda Alice Klueger

Estou aqui a lembrar do que me contou o João. Claro que o nome dele não é João, pois não sou tansa o suficiente para botar o nome verdadeiro dele e fazer com que ele incorra no desagrado dos poderosos que poderão se armar com represálias e acabar com o pobre trabalhador blumenauense, oficial pedreiro, que ganha a vida com dignidade construindo as casas e os edifícios para a burguesia.

João é jovem, é casado, tem três filhinhos – com seu suado salário comprou um terreninho numa encosta e construiu uma bela casinha também para si, fez varanda, garagem, a mulher dele botou cortinas nas janelas, plantou roseiras na frente – a vida ia que era uma beleza, João pensando em arranjar um cachorrinho para brincar com as crianças, quando veio o Desastre, a Desgraça – e numa tarde de chuva, em novembro de 2008, a casinha e o terreno dele escorregaram morro baixo, e mal e mal ele conseguiu salvar a família.

Faz algo como 105 dias que tal ocorreu, e João teve a grande sorte de não ter que ir com a família para um dos muitos abrigos da cidade, onde ocorreram coisas que nem se acredita – um cunhado dividiu com ele a casinha onde morava, e lá também havia duas crianças.

Tá, há 105 dias atrás esta minha cidade estava em tal caos que só estando aqui para acreditar, e faltou comida na casinha onde João se abrigara. Tal não seria problema, claro, as estradas de acesso à cidade mal davam conta de deixar passar os caminhões e caminhões de donativos que chegavam de todo o país e do exterior, tanta comida que agora, passados os tantos 105 dias, o responsável pelo assunto na cidade andou informando que ainda há 200 TONELADAS de donativos estocados. E João foi em busca de comida para a sua gente.

- Amiga – ele me disse – perdi a conta de quantos cadastros tive que fazer aqui e ali para ganhar algo para trazer para as crianças. Se eu conseguisse um quilozinho de arroz que fosse já ficaria feliz – não havia mais nada para as crianças comerem.

Pois vocês acham que João ganhou um quilozinho de arroz? Ganhou nada! E tinha gente ganhando carros tão cheios de comida que as rodas ficavam meio arriadas de tanto peso! Quem será que levou tanta comida para onde?

Sei que João e sua gente nada ganharam, tiveram que se virar com a fome, vendo gente com carros de rodas arriadas de tão lotados passarem defronte da casinha onde estavam abrigados. João é preto, sua família também. Será que isto tem algo a ver? Talvez tenha, talvez não, pois também ouvi diversas pessoas brancas me contando histórias muito parecidas.

Daí fico lembrando de outras histórias ouvidas nestes últimos 105 dias, como o daquele homem que estava num abrigo, e ajudou a descarregar de um caminhão caixas e caixas e mais caixas de sobrecoxa de galinha desossada, pitéu caro e raro, e ficou com água na boca, esperando para comer ao menos umazinha, quando ela fosse servida, só que naquele abrigo nunca se comeu sobrecoxa de galinha desossada. Para onde foram aquelas caixas todas? Para um supermercado, ou talvez para os amplos congeladores de burgueses que fedem?

E lembro mais: da minha amiga Janete (claro que também não sou tansa o suficiente para dar o nome verdadeiro da Janete!), que é da APP de uma escola, e que faz poucas semanas estava na escola e veio uma mãe buscar uma lata de leite para seu bebê. Ela atendeu à mãe, deu o leite para o qual aquela criança estava cadastrada, e juntou ao leite algumas caixinhas de água de coco. Nunca estive naquele abrigo e não sei quem o dirige, mas foi o tal diretor (ou diretora) quem partiu para cima da Janete: não era para dar a água de coco. Janete já teve suas crianças, sabe que elas precisam de suplementos além do leite, e rebateu a proibição – por que não podia dar, se era coisa de doação? Levou uma bronca – não era para dar e pronto. Fico pensando em qual supermercado deve estar sendo vendida aquela água de coco proibida, ou em qual geladeira de qual burguês ela está...

São pequenas amostras do que acontece por aqui por esta cidade de Blumenau. Se fosse contar cada história que acabo sabendo, mil folhas talvez não fossem suficientes.

E agora estão jogando comida fora, comida cuja validade venceu! Quantas toneladas estão jogando? Não sei, mas desta vez não tenho como passar por mentirosa, pois antes de mim a imprensa radiofônica e televisiva noticiou, com as devidas imagens e tudo – disseram-me também que saiu em jornais de papel, mas eu, pessoalmente, não botei os olhos neles, e então não faço afirmações a respeito. Mas o quilo de arroz que foi negado às crianças de João está lá no lixão da cidade, e tantas outras coisas, tantas outras! Quando a imprensa começou a noticiar, as autoridades disseram que era coisinha de nada, comidas que já tinham chegado vencidas há 105 dias atrás. Uma ova que era! Era a comida que foi negada a tantos Joões e tantas crianças, brancas e pretas, decerto para se ver quem podia levar maior vantagem com o que sobrasse.

Sei que você doou, e você também, e você outro decerto também – e não me esqueço daquele homem de Salvador que apareceu na televisão, ganhador de salário mínimo, mas que também conseguiu doar um pouquinho...

Sinto asco de certa parte da humanidade que é capaz de deixar criancinhas sem um quilo de arroz ou uma água de coco, para jogar comida no lixo depois. Ai, que asco que sinto!

Blumenau, 08 de março de 2009.

Urda Alice Klueger.

Escritora e historiadora.

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