BLOG O MURAL: Para Mino Carta, jornalista e Diretor da Revista Carta Capital, a renuncia do Papa não significa o fim do mundo, leiam o texto dele sobre esse assunto. Italiano erradicado no Brasil ele conhece muito bem as bases do papado e de suas politicas religiosas, pois era frequentador do vaticano na sua infância e adolescência, e pode como ninguém trazer dados importante para entendimento dessa renuncia, que marca a história do catolicismo no mundo.
Quinhentos degraus, se não me engano, separam o chão de São
Pedro do terraço circular que cerca a
cúspide da cúpula de Michelangelo. Galguei-os aos 8 anos de idade conduzido por
minha avó paterna, Adele, romana de Roma. Escalada audaciosa e jamais repetida,
e lá do alto me pareceu contemplar o
Universo.
À de São Pedro prefiro a cúpula de Santa Maria del Fiore, em Florença,
obra de Filippo Brunelleschi, remonta aos começos do século XV e é a primeira
erguida pelo homem. Esta me ficou na memória na mocidade, e minha emoção foi
puramente estética. Já não cursava o primário no colégio das Marcelinas, as
boas freiras com suas toucas graciosas a despeito dos acabamentos em renda
negra.
Estudei no colégio das Marcelinas porque meu pai, anticlerical convicto,
via ali um reduto antifascista. E era, clara e corajosamente. Não obrigavam os
alunos a participar nas manhãs de sábado dos desfiles organizados em praça
pública, a reunirem uma patética garotada de uniforme não bélico, belicoso. E,
em pleno vigor das leis raciais que mancomunaram Mussolini a Hitler, abrigavam
meninos e meninas judeus em classes mistas, isentando-os das aulas de
catecismo, quando iam ao jardim para brincar entre as árvores. Para minha
inveja.
Não duvidava, então, a despeito da ojeriza irreversível ao catecismo, da
condição do papa na qualidade de vigário do Altíssimo. Meu pai permitia-se
insinuar brandas dúvidas, sem êxito. Eu mostrava talento para coroinha e
voltava miradas luzidias na direção de uma coleguinha judia de olhos amendoados
e sobrenome Avigdor.
A respeito do papa, como númeno e como fenômeno, tenho lido até a
fartura nos últimos tempos e não nego que haja razões para tanto. Ocorre,
porém, que Bento XVI não é, na minha visão, aquele que os analistas pretendem.
Trata-se de um ancião alquebrado, envelhecido apressadamente no mister, e isso
é inegável. Que a imponência dos problemas a enfrentar o tenha levado à
renúncia é admissível, e até provável. Certo é que apareceu o homem comum,
frágil e impotente, obviamente incapaz de representar o Criador, como supunha
eu ao encarar o Universo do alto de São Pedro.
A renúncia de Ratzinger, empedernido, irredutível conservador, não é um
sinal inesperado de modernidade, é a confissão da derrota, pessoal e da
anacrônica monarquia por direito divino que se mantém impávida desde a
oficialização do cristianismo como religião de Estado pelo imperador
Constantino, pouco além do ano 300 d.C.
Cada vez mais entregue a Terra à prepotência das oligarquias do poder
pelo poder, e de tudo que as favorece, não deixará de haver empenho
fervoroso em perpetuar o quanto aí está para ver como fica. Mais ou menos
como se dá no enfrentamento da crise econômica que abala a humanidade em peso.
Em vez de combater quem a provoca, as soluções postas em prática visam a lhe
facilitar a vida. Em lugar de produzir bens, ou saber e conhecimento,
multiplicam-se mentiras grosseiras e grana para poucos, empulhações vulgares
(como a arte contemporânea, insisto neste ponto, como sinal da imbecilização do
planeta) e os privilégios dos emires, autênticos ou recém-construídos.
Bento XVI desistiu de sua
habitual arrogância, que o conduziu intocada até o papado, e entregou os
pontos. Aplastado, deu as pancadas de praxe no tablado. Ganha um futuro em
sossego, sem exclusão dos pés metidos em pantufas marrons. Prada, é o caso de
apostar. Espero que o assaltem os pesadelos noites adentro, e mesmo ao longo do
dia. No mais, não vou arregalar os olhos se o futuro papa for igual a Ratzinger
na confirmação da insustentável medievalidade da Igreja Católica Apostólica
Romana.
Reveste-se o momento da força avassaladora e imponderável dos símbolos,
manifestada inclusive na capacidade de anexar situações aparentemente diversas,
de aprisioná-las em um único contexto, atadas à circunstância, agrilhoadas sem
perceber, vítimas do destino fatídico. Estaríamos diante de mais uma
encruzilhada global? Não se trataria do fim do mundo, mas do fim de um mundo, e
talvez seja aprazível figurar na assistência. Quem resiste, perderia. Ou
ganharia, para ser ainda poder dentro dele, largo tempo de sombra espessa.
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