BLOG O MURAL: Punir os excessos
do mal, mas não eliminar a causa. Esse é o destino da Ética no discurso
pós-moderno repleto de palavras mágicas como "responsabilidade",
"transparência", "sinceridade" etc. De ciência da moral que
buscava as bases racionais da Verdade e do Bem, hoje a Ética é absorvida pelo
subjetivismo, relativismo e fragmentação. Talvez seja o motivo pelo qual a
permissividade da sociedade de consumo convive com o espírito da vigilância
hiper-moralista.
Se há uma coisa que o Gnosticismo enquanto método de
análise de uma realidade (seja cotidiana - como no caso desse blog - seja
política ou econômica) nos ensina é saber diferenciar entre uma análise
ontológica e uma análise moralista. Toda análise moralista pretende combater os
excessos do mal, mas não eliminar a causa. Parte do princípio de que esses
excessos se originam em comportamentos e motivações corrompidas puramente
individuais. Diferente disso, uma análise ontológica vai à radicalidade ao ver
o mal não nos excessos, mas na própria estrutura que confina os indivíduos. Por
exemplo, a estrutura familiar ou religiosa.
Esse parece ser o destino da palavra “Ética” na
sociedade contemporânea: decair para o campo do julgamento moralizador, do
relativismo e do subjetivismo.
“Conscientização” e “Ética” são palavras repetidas
como um mantra para a solução de todos os problemas na sociedade. Poluição,
trânsito, violência, intolerância, crises financeiras, especulação, corrupção
etc., parece que todos os problemas clamam pela necessidade de que os
indivíduos conscientizem-se das implicações éticas dos seus atos. O bem comum,
o outro, a própria sociedade necessitam de que todos tomem consciência de
palavras mágicas como “responsabilidade”, “sustentabilidade”, “transparência”,
“sinceridade” e assim por diante nas ações em todos os setores de relações humanas.
Nunca se falou tanto em Ética. Da ciência geral da
moral na Filosofia, ela acabou se fragmentando em diversas éticas: ética
profissional, ética religiosa, ética ambiental, ética conjugal, ética nos
negócios e assim em diante.
Se um setor da práxis social apresentar alguma prática que
cause injúria ou prejuízo a algumas das partes, reivindica-se um comportamento
“ético”.
“Em
Aristóteles a Ética buscava a fundamentação racional da busca do Belo, da
Verdade e do Bem
Em busca da fundamentação para o bom modo de viver
humano em busca do Belo, da Verdade e do Bem, a Ética nas suas origens
aristotélicas buscava refletir como o homem deveria se portar no meio social.
Se a moral possui um caráter obrigatório em torno de tabus, tradição e
cotidiano, a Ética buscava um caráter reflexivo. Isso significa que buscava,
através da convicção e inteligência (e não mais pela obediência), um conjunto
de valores objetivos para toda a práxis humana.
Mas o que testemunhamos hoje é a fragmentação da
reflexão da Ética, como se cada setor da sociedade, relativamente aos seus
objetos e diferentes agentes, necessitasse de um estudo ético especializado.
Além dessa fragmentação, o que chama a atenção é o
subjetivismo da ética pós-moderna. Categorias psicológicas ou intimistas são
usadas para julgar relações sociais, papéis e estruturas cuja natureza é
ontológica, isto é, têm uma dinâmica interna que independe da personalidade do
indivíduo que ocupe a posição.
Por exemplo, analisar a atual crise dos mercados
financeiros como o resultado da ganância, ambição, compulsão e luxúria dos
agentes econômicos é reduzir estruturas da economia política a categorias
psicológicas ou de caráter. O resultado são análises moralistas que distinguem
os “bad guys” dos “good guys”, exigindo-se regulamentações e freios éticos.
Documentários como o premiado “Trabalho Interno” (Inside Job, 2010) e as
denúncias do documentarista Michel Moore vão por essa linha.
Da mesma forma, reivindicar leis rígidas, fim da
impunidade ou projetos de “conscientização” e “educação” para combater a
violência no trânsito é inócuo por reduzir todos os problemas ao excesso e
falhas de caráter do indivíduo numa sociedade que celebra e glamoriza a
velocidade.
A crítica
moralista: achar os "bad guys" para que os excessos
do mal sejam punidos em meio à crise financeira global |
Ética e o “Outro”
Nas suas origens Ontologia e Ética eram
complementares. Não era possível a busca da Verdade e do Bem sem compreender as
propriedades mais gerais das coisas, dos seres e da realidade. Mas, na cultura
pós-moderna são separadas. Enquanto a Ontologia é condenada por ser
“metafísica” a Ética é absorvida pelo subjetivismo e, como consequência,
categorias psicológicas passam a servir de medidas para o julgamento da ação
humana.
Perde-se consciência da existência ontológica do
“Outro” na ação humana. O “Outro” significa um contexto que produz indivíduos
em seu agir social, que os precede, o mundo que nos observa, que nos estrutura:
ambientes, cenários, objetos e produtos culturais. Como bem observou Olga
Sabido (professora de ciência política da Universidade Nacional Autônoma -
México), o indivíduo permanece aprisionado em uma estrutura que cria uma
identidade que pode corrompê-lo (veja SABIDO, Olga “Sorpresa y repugnancia” in:
LÈON, Emma (org.) Los Rostros Del Outro. Reconocimiento, invención y
borramento de La alteridad. Anthropos Ed. México – Universidad Autonoma –
CRIM, 2009).
Os especuladores, os jogadores compulsivos do
mercado financeiro, os gananciosos capazes de pulverizar o bem comum são apenas
pessoas com a personalidade certa no lugar certo no interior da estrutura do
Outro. Puni-los é combater o excesso do mal, sem colocar em questionamento a
“cena”, aquilo que Olga Sabido denomina como “o encaixe do Outro”, isto é, o
momento em que o escript ou a programação estrutural assume o controle das
ações humanas.
Isso está além da Ética, caráter ou convicção
moral. Se estabelecermos um raciocínio inverso, um indivíduo que porventura
fosse assim tão virtuoso, o campeão da ética e da moral, jamais estaria no
lugar onde ocorreria o “encaixe do Outro” e a própria estrutura (o
Outro) nunca existiria. Não teríamos, por exemplo, o próprio mercado
financeiro. Não há mercado de operações financeiras “éticas”, mas a sua própria
negação.
O drama prototípico
de Ulisses: o homem amarrado
às estruturas da civilização que segue o rumo inexorável |
Seguindo o mesmo raciocínio, se desaparecer o
indivíduo produzido pela cultura que glamouriza a velocidade não teríamos,
enfim, um trânsito “ético” ou “educado”. Simplesmente o transporte individual e
toda uma urbanização em torno do automóvel deixariam de existir.
Talvez a melhor imagem dessa submissão do ser
humano ao Outro esteja na analogia que Theodor Adorno e Max Horkheimer fazem
entre a evolução da civilização iluminista ocidental e o drama prototípico de
Ulisses na “Odisséia” de Homero (veja ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max. Dialética
do Esclarecimento, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997).
Ulisses deixa-se amarrar ao mastro principal da sua
nau enquanto seus remadores têm seus ouvidos tampados com cera para que não
ouçam o canto das sereias que atraem os marinheiros levando as embarcações ao
encontro dos rochedos. Trabalhadores e burguesia atados ao barco da civilização
iluminista e capitalista. Os detentores do capital (representado por Ulisses)
sabem que é possível outro mundo (eles se permitem o prazer de ouvir o canto),
mas estão amarrados firmemente às estruturas que seguem o curso inexorável.
A Ética sem Ontologia
Esse destino da ética no mundo atual (a de ser
invocada apenas para conter os excessos) talvez explique o paradoxo de a
cultura pós-moderna ser ao mesmo tempo permissiva e moralista. De um lado o
hedonismo da sociedade de consumo (a cultura do prazer, drogas, sensações
e realizações individualistas sem limites) e, simultaneamente, o espírito
de vigilância hiper-moralista pronto para denunciar desde atentados à liberdade
humana, intolerância e direitos humanos até a proibição histérica do fumo,
pornografia, aborto, assédio sexual, álcool e corrupção. Combatemos os excessos
para mantermos intactas as estruturas.
Dessa maneira a Ética decaiu na ideologia: primeiro
como remédio moralizante para todos os excessos. E, segundo, como estratégia de
conferir racionalidade às diversas legislações e regulamentações ou códigos
profissionais, de conduta etc.
Por isso, nas universidades cada vez mais
professores de Filosofia tornam-se professores de Ética. A Ontologia é
abandonada (por ser considerada excessivamente “metafísica”) para, em seu
lugar, atrelar a Ética ao ensino de legislações e regulamentações particulares
de cada setor de atividade, aumentando a fragmentação.
Sem a Ontologia, a Ética torna-se presa fácil da
ilusão ideológica de uma espécie de eterno retorno: sanado os excessos e
punidos os culpados, a estrutura permanece a mesma criando o ciclo vicioso das
crises: elas sempre retornam porque pessoas certas com a personalidade certa
ocuparão sempre os mesmos papéis, para que o “encaixe do Outro” ocorra, embora
sempre ouçamos o canto das sereias, isto é, a possibilidade de que o Outro
desapareça.
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