BLOG O MURAL: No dia que marca a passagem de 49 anos do golpe militar de 1964, Eduardo Guimarães, do Blog da Cidadania, joga por terra um mito: o de que a tomada de poder pelos militares foi um mal necessário para evitar que se implantasse um regime comunista no País; ele afirma ainda que, com a Comissão da Verdade, o Brasil, governado por uma sobrevivente daquele período, tem uma dívida a saldar com seus filhos, revelando o que foi o terror
Por Eduardo Guimarães, do Blog da Cidadania
Comecei a ler jornal aos
treze anos. Era 1973 e minha leitura favorita era o primeiro caderno do
Estadão, o de política – começara a me interessar pelo assunto porque
via a família discuti-lo de uma forma que me intrigava. Mesmo dentro de
casa, familiares conversavam sussurrando. E interrompiam o assunto
quando eu aparecia.
Lendo o Estadão, percebia
que faltavam informações. E quando fazia perguntas à família, não
conseguia respostas satisfatórias – jovens da minha idade eram tratados
como crianças, àquele tempo.
Naquele ano, assisti a
uma reportagem no programa Fantástico – que estreara na Globo no mesmo
ano – que me faria entender que aquilo que lia no Estadão não traduzia a
verdade do que se passava no Brasil.
Lembro-me com clareza do
título da reportagem: “Eleição, um show americano”. Mostrava, se bem me
lembro, uma convenção partidária nos Estados Unidos – só não me lembro
se era do partido democrata ou republicano.
Não era ano eleitoral nos Estados Unidos, mas a matéria era sobre a forma como funcionava a democracia naquele país.
Vejo, como se fosse
ontem, as bandeirolas coloridas, um clima de euforia. Parecia uma festa.
Tudo aquilo era para escolher um candidato a presidente do país que
produzia os filmes, seriados e revistas em quadrinhos que tanto amava.
Mas o que me intrigava
era por que, no Brasil, aquilo não existia. Por que em meu país não
elegíamos presidentes? O jornal não me contava.
Perguntei à família, mas
me enrolaram e não responderam. Nem minha mãe, que desde que me entendo
por gente fazia questão de me doutrinar culturalmente por todos os
meios, deu-me uma resposta. Sugeriu-me que parasse com a leitura de
política porque, em nosso país, não era “bom” se interessar por aquele
assunto.
Ficara muito intrigado.
Aliás, sentia uma certa revolta. Vira na televisão um país que, então,
era tido como exemplo para o mundo fazendo da sua democracia uma festa.
Mas, no meu país, aquilo tudo, que me parecia tão positivo, era
proibido.
Por que?
Um ano mais tarde, na
escola – estudava no Colégio São Luis, em São Paulo –, então no
“ginásio”, travei amizade com um rapaz do “científico” (ensino médio)
que me contou em detalhes o que passava no Brasil e que a família não me
queria revelar.
Daniel era quatro anos
mais velho do que eu – tinha 18 anos. Ele fazia parte do que chamou de
“partido” e disse que o Brasil estava sob uma ditadura, que militares
nos governavam na marra e, assim, não podiam permitir que votássemos
porque a maioria não os queria no poder e, assim, se o povo pudesse
votar eles não continuariam governando.
Naquele distante 1973,
filho de uma família abastada – vivia com mãe e avós e meu avô era um
alto executivo da Mercedes Benz –, descobri que o regime militar era
nefasto, uma violência. Mas minha repulsa àquele período de trevas se
consolidou de forma indelével em meu espírito quando meu amigo Daniel
“sumiu”.
Quando parou de ir à
escola, após algumas semanas peguei minha bicicleta e fui à sua casa.
Sua irmã me atendeu à porta. Tinha um semblante desolador. Fiquei
assustado. Disse que Daniel “viajara” e me mandou embora.
De volta à escola, seus colegas de classe, mais velhos do que eu, não quiseram me dar informações.
Alguns poucos anos
depois, já sabia que meu amigo tinha sido tragado por uma repressão que
destruía a todo aquele que ousava pensar diferente dos ditadores. Mesmo
que fosse um rapazola.
Cheguei a frequentar
reuniões no colégio Equipe, na Bela Vista. Falavam em resistência, em
enfrentar a ditadura. E falavam dos riscos. Tive medo, muito medo e me
omiti. Tinha uns 16 anos e, até o fim dos anos setenta, conformei-me em
acompanhar pelo Estadão o processo que levaria o Brasil à abertura
política. Mas nunca me envolvi.
Até hoje sinto vergonha
disso, e só relato aqui como que para expiar minha culpa. Sempre que
posso, confesso minha covardia na juventude.
Hoje, quando me dizem
“corajoso” por incomodar os barões da mídia que atiraram meu país
naquele horror, dou um sorriso amargo e me lembro de quão covarde eu
fui. E reflito que ser “corajoso” hoje, em plena democracia, não tem
valor algum.
Mas prometi a mim mesmo
que sempre que pudesse confessaria a covardia a que me dei na juventude,
quando tantos outros como eu deram sua vida para libertar o Brasil de
uma ditadura feroz que – há pouco o país descobriu – chegou a torturar
bebês diante de mães militantes políticas para obrigá-las a lhe dar
informações.
A ditadura, porém, não
terminou. Apesar de a ditadura político-institucional ter acabado há
décadas, o país ainda é prisioneiro de uma outra ditadura, a ditadura da
mentira.
Vejo na internet, nos
jornais e até na tevê, inclusive em editoriais desses veículos,
justificativas aos crimes daqueles militares e civis que ceifaram a vida
de tantos jovens como meu amigo Daniel. Dizem que as vítimas daquele
regime criminoso queriam implantar uma ditadura no país e atribuem a
“terroristas” como aquele amigo crimes iguais aos que cometeram.
Mentirosos.
Onde estão as famílias
das vítimas dos “terroristas” a bradarem contra os assassinatos ou
torturas de país, mães, irmãos, amigos? Por que, como as vítimas da
ditadura, não se organizam e levam fotos de entes queridos que os que
tentavam devolver a democracia ao Brasil teriam exterminado ou
torturado?
Claro que, sim, houve
alvos militares. E é claro que alguns soldados da ditadura tombaram em
combate com “terroristas”. Mas nada que sequer se aproxime dos meninos e
meninas que aquele regime hediondo sequestrou, seviciou e exterminou.
Hoje, 1º de abril de
2013, faz 49 anos que o inferno foi desencadeado no país. Sobreviventes
que enfrentaram aqueles psicopatas, assassinos, estupradores, ladrões,
pervertidos que colocaram este país de joelhos, chegaram ao poder.
Aliás, o Brasil é governado por uma heroína que, altiva, enfrentou
aqueles demônios.
Contudo, o Brasil não é
livre. Enquanto as mentiras que os autores daquela loucura inventaram
não forem desmascaradas, enquanto o nosso povo não souber a verdade do
que se passou naquelas duas terríveis décadas, a mentira continuará nos
governando. Seremos tão prisioneiros dela quanto fomos da ditadura
militar.
Deveria escrever mais,
muito mais. Mas a boca está seca e os olhos, molhados. Quem sabe um
outro dia termino de dizer tudo o que deveria. Talvez, nesse dia,
consiga mergulhar fundo naquelas memórias sem ficar no estado emocional
em que estou ao terminar este texto. Sobretudo pela culpa por minha
omissão, que nunca me deixou em paz.
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