sábado, 14 de janeiro de 2012

Neri: não entramos no século 21, mas saímos do 19

BLOG O MURAL: Embora se possa ter diversas diferenças quanto à avaliação dos componentes determinantes do desenvolvimento brasileiro nos anos recentes, a entrevista do economista Marcelo Neri, da Fundação Getúlio Vargas, à Carta Capital, expõe com clareza e de forma impactante o impacto deste processo na vida do país. Já nosso estado tirou pouco proveito disso ou quase nada.
 


Ao ler a entrevista pude perceber o quanto nosso estado esta perdendo em não implementar política de distribuição de renda, mas a tempo de mudar essa situação. É só mudar a maneira de enxergar o estado e mudar também seus governantes afinal estão no comando a mais de 16 anos.
Merece, portanto, ser transcrita na íntegra.

CartaCapital: Quais os principais números da recente onda de inclusão social no País?
Marcelo Neri: Desde o lançamento do Plano Real até dezembro de 2010, no fim da década passada, a pobreza caiu 67%. Desde o governo Lula, caiu 50,6% nos dois mandatos. Lula fez 25 anos, ou seja, a meta do milênio de reduzir a pobreza à metade, em oito anos. E desde quando Fernando Henrique era ministro da Fazenda reduziu 31%. Então, caiu 31% e, depois, 50%, o que dá 67% de queda, dois terços da pobreza no Brasil. O primeiro passo foi o controle da inflação, e o investimento pesado em educação lá atrás. Em 1990, o Brasil tinha 16% das crianças de 7 a 14 anos fora da escola. Em 2000, tinha 4%. Agora tem menos de 2%. Na década passada, houve redução da desigualdade e mais emprego formal, com carteira assinada. Na minha visão, são os dois maiores méritos de cada década (de 1990 e 2000). A desigualdade e o emprego com carteira são bastante influenciados tanto pela estabilização quanto pela educação. E, obviamente, também devido a uma política social ativa. O Bolsa Família talvez seja o maior exemplo e descende também lá do Bolsa Escola. Então teve uma continuidade interessante, macroeconomicamente, em política social, em educação… Até o primeiro mandato de Lula a gente não andou para frente em educação, mas no segundo mandato retomamos a agenda de educação, que foi além com Fernando Haddad.

CC: Quais os avanços mais recentes?
MN: Em 2010, para se ter ideia, a pobreza caiu 16%, foi algo espetacular. Também porque foi ano eleitoral e de saída da crise. Aqui, a crise, por sinal, não foi tão forte, mas ela aconteceu. O Censo acabou de confirmar: a renda dos 50% mais pobres cresceu 68%, entre 2000 e 2010. A dos 10% mais ricos cresceu 10%. Desde 2003, no primeiro ano do governo Lula, a gente mudou de patamar em geração de emprego. Já em 2004, inclusive, e veio acelerando. A gente, que vivia no voo da galinha, ano bom, ano ruim, conseguiu ter vários anos bons de crescimento – não excepcionais. Mas anos excepcionais em redução de desigualdade. Outro dado importante é que 39 milhões de pessoas subiram à classe C. O Brasil tem um pouco um espírito de Ayrton Senna, anda bem debaixo das chuvas e trovoadas internacionais.

CC: Como andou a desigualdade nos países centrais nas últimas décadas?
MN: Aí há algum paradoxo. Dentro dos países a desigualdade aumentou. Em todos os países europeus ela também aumentou, desde 1985, com exceção de França e Bélgica. Nos Estados Unidos, ela vai aumentando desde a era Reagan.

CC: E não parou mais de crescer?
MN: Não para de aumentar. O protesto em Wall Street, por sinal, é baseado nessa situação. Na Índia e na China, está crescendo muito a desigualdade. E em outros países emergentes também, menos nos latino-americanos, o que é realmente um dado novo. E o Brasil está dentro desse contexto latino-americano. Então existe certa convergência da desigualdade no mundo: quem tinha muita passou a ter menos, como nós da América Latina. E quem tinha meno , como a Europa e mesmo os Estados Unidos, embora não tão menos, bem mais do que a Europa, aumentou.

CC: Voltando ao Brasil, qual segmento social ficou para trás?
MN: A renda em São Paulo, de 2000 a 2009, cresceu 7,2% (em termos reais per capita). A renda no Nordeste cresce 42%. Em Sergipe, estado em que mais cresceu, o aumento foi de 58%. No campo a renda cresceu 49% e nas metrópoles, 21%. Entre as mulheres aumentou 38% e entre os homens, 16%. Para os negros 43%, ante 21% para os brancos. Entre analfabetos cresceu 47%. Para as pessoas com pelo menos o superior incompleto caiu 17%. Ou seja, para todo mundo que é pobre cresceu a renda. O que é difícil para nós que não estamos na base percebermos. A gente olha e fala: a renda desse cara era de 300 reais, agora é de 500, mas o que mudou? Para o cara é uma revolução, e é realmente. Essa redução da desigualdade é a grande marca brasileira dos últimos dez anos. E ela continua, não tem nenhum sinal de que desacelerou. Pode até parar (de cair) com a crise, como parou em 2009, mas voltou, não andou para trás. Obviamente ainda será preciso ver os dados da crise atual.

CC: Os que ficaram para trás são da chamada classe média tradicional?
MN: Acho que sim, essa é uma boa classificação. Quem era classe média tradicional, perdeu. Acho que o Brasil dos últimos anos é o seguinte: boas e más notícias. A boa é que a desigualdade caiu. A má notícia é que a classe média tradicional não entrou na festa. O espetáculo do crescimento é só a preços populares, é um pouco isso. Não tenho essa visão de muita gente que diz que o Brasil entrou no século XXI. A gente está saindo do século XIX, é uma abolição da escravatura retardada. Está saindo de um país muito desigual muito rápido, mas recuperando um atraso grande.

CC: O que explica isso?
MN: Foi uma queda do retorno da educação. Por que a renda cresce na base da pirâmide? Pense no filho do peão. O pai dele era analfabeto ou analfabeto funcional. Ele foi lá, estudou, chegou ao ensino médio e não quer ser peão como o pai. Aí a demanda por pessoas pouco educadas aumentou muito. Tem mais gente com ensino médio, chegando ao ensino superior, com qualidade questionável da educação, é verdade, mas tem mais concorrência. Quem tem um diploma deixou de ser tão valorizado. E quem não tem diploma passou a ser valorizado porque são poucos, e tem muito trabalho braçal. Então tem o fator educação e o fator programas sociais. É o dinheiro para as pessoas lá na base, o Bolsa Família.

CC: Qual a sua expectativa em relação ao reajuste do salário mínimo, válido a partir de 1° de janeiro?
MN: O efeito do mínimo é pequeno no combate à desigualdade. Sou muito mais fã do Bolsa Família. E crítico do salário mínimo. Até mostrei, 16 anos atrás, o importante papel que o salário mínimo teve para reduzir a pobreza depois do Real. Mostramos que a queda de 40% da pobreza foi no mês que o salário mínimo teve um forte reajuste, maio de 1995. Só que esse efeito foi embora. E agora claramente o Brasil vai entrar em um ano em que deveria fazer algum”dever de casa” nas contas públicas, mas pegará o efeito do Pibão (crescimento de 7,5% do PIB) de 2010 e automaticamente jogar para o salário mínimo de 2012. Não é uma fórmula razoável, acho inclusive que os analistas econômicos aceitaram alguma coisa muito ruim para o País. Tem um efeito desastroso nas contas e não tem um efeito tão positivo sobre a desigualdade.

CC: O Bolsa Família continuará relevante?
MN: Quem tem preocupações fiscais deveria gostar do Bolsa Família. Acho que a gente está com uma nova geração, até tenho participado aqui no Rio e em Curitiba do desenho de programas complementares ao Bolsa Família, que usam o cadastro único do Bolsa Família. Aqui no Rio existe o Família Carioca, um programa municipal que atende 500 mil famílias, criado pela Claudia Costin, que é excepcional, com avaliações bimestrais. Criamos um prêmio para os alunos pobres que melhorarem a nota. E estamos começando a ver os resultados. E são resultados interessantes. O governo do estado está fazendo a mesma coisa. Isso é o que eu gosto de chamar de um novo federalismo social, com vários níveis de governo começando a atuar na área de educação, com metas de educação. O Brasil tem efervescência, somos uma democracia vibrante… Veja lá nos países árabes, eles estão numa transformação, mas é uma transformação bélica, traumática. Veja a Europa, mesmo antes da crise… Aqui no Brasil a gente está com esperança, é uma sociedade em movimento. Morei há 30 anos na Africa do Sul e tive oportunidade de voltar lá recentemente. E tive exatamente a mesma sensação lá, embora haja problemas bem complicados. Talvez esse seja o aspecto mais fascinante de morar no Brasil atualmente.

CC: Quais os maiores riscos em termos objetivos para a luta contra a desigualdade?
MN: Não fazer as reformas. O Brasil gerou muito emprego formal. Mas imagine se a gente tivesse uma legislação trabalhista mais ajeitada. Porque o Brasil tem um Estado grande e há uma preferência da população por isso. Acho que o Brasil está optando por um caminho do meio, mesclando Estado com iniciativa privada, respeito a contratos, fazendo uma política ativa. Agora se a gente usar essa rede do Estado para prover serviços bons, de forma transparente, além de todo esse problema da corrupção que a gente tem de resolver. De alguma forma estamos encaminhando isso, a sociedade está. Vai depender da nossa capacidade de superar obstáculos.

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