sábado, 8 de junho de 2013

O colunista do New York Times viciado em crack e a nossa cracolândia

BLOG O MURAL: A fascinante trajetória de David Carr, autor do livro “A Noite da Arma”.

Carr
Carr
Ruy Castro defende a teoria de que é preciso aguardar aproximadamente dez anos após a morte para se escrever uma biografia respeitável de alguém. Esse seria o período considerado prudente para esmiuçar o biografado à luz da história, bem como a quarentena ideal contra possíveis surpresas. Afinal, mesmo depois de vestir o paletó de madeira, alguns fatos tardiamente descobertos fazem brutal diferença na compreensão psicológica do objeto de escrutínio. Sempre há chance de aparecer um filho fora do casamento ou sabe-se lá que outros esqueletos mais podem sair em uma exumação literária.
Por igual razão acredito que uma autobiografia deve ser vista com ressalvas. Não só pelo protagonista ainda estar vivo, como pelo fato de ter sido o próprio biografado a ditar e redigir suas aventuras. A tendência ao enaltecimento de si mesmo é temerária. Já dizia Rubens Ricupero: “O que é bom a gente mostra, o que é ruim a gente esconde”.
Não é o que ocorre com A noite da arma, de David Carr, colunista do New York Times.
David Carr era um sujeito robusto, capaz de impor-se fisicamente diante de criaturas não exatamente dóceis como traficantes e viciados. Hoje, aos 57 anos, mas com corpinho de um setentão bem rodado, sobreviveu para contar sua longa trajetória de relacionamentos com crack, cocaína, álcool e o que mais lhe fosse oferecido. Era do tipo que não sabia falar “não”. Pagou caro, mas não em dinheiro.
Ter sobrevivido poderia resultar num estandarte do lema “mais vale viver dez anos a mil que mil anos a dez” ou, pior, em uma catequese didática no estilo “foi então que encontrei Jesus”. Quando se trata de alguém que bateu no fundo do poço diversas vezes antes de alcançar a superfície, a chance de um sermão que enverede por aí é gigante. Mas Carr não cai em armadilhas simples como essa e, mesmo que estivesse desatento, seus amigos não permitiriam. Em um papo com seu chefe no NYT acerca do livro quando ainda embrionário, foi alertado imediatamente do cuidado a ser tomado na hora de relatar a correção feita no rumo da vida sem ser piegas: “Sabe aquela parte do ‘sacudir a poeira e dar a volta por cima’? Aquela merda é tããão chaaaata…”
Não foi, portanto, o caminho tomado por Carr e quando o ofício do biografado é justamente a escrita, só temos a ganhar. Tudo é surpreendente no livro. A começar pela construção feita a partir de entrevistas com pessoas chave em sua história. David Carr não se sentia à vontade nem de posse total de suas memórias. Como bom repórter, foi averiguar.
A lembrança – ou a falta dela – no episódio da noite da arma foi decisiva para que o autor optasse por colher relatos de sua vida através dos demais envolvidos nas ocorrências (literalmente, pois a ficha policial que Carr produziu nos anos em que esteve chapado é extensa). Não confiou apenas na memória e, sobretudo, descreveu-as como lhe foram contadas sendo que, às vezes, o entrevistado também não estava em condição de registrar muita coisa na época do ocorrido e assim uma terceira fonte de informação se fazia necessária, o que significava ler o que ficara registrado na delegacia, por exemplo.
Biografias de dependentes químicos invariavelmente trazem dramaticidade em altas doses que não raro culminam na overdose do leitor. Então por que recaímos?
Acredito que lemos biografias em boa parte por curiosidade – um voyeurismo disfarçado de culto – e em parte por atribuir-lhes a função de auto-ajuda. Se os propósitos do leitor forem só esses, David Carr supera em muito as expectativas.
Pessoas não são casos perdidos
Pessoas não são casos perdidos
Com sua trajetória inspiradora, de caráter “saído das cinzas”, é totalmente desprovido de autopiedade, autocomiseração. Quando parou com tudo, Carr foi acometido por um câncer (sem grana nem plano de saúde, foi tratado no sistema público de saúde) que poderia remeter aos dramalhões mexicanos e, no entanto, a levada narrativa mantem-se ligeira, objetiva e por diversas vezes carregada de humor.
A essa altura você talvez esteja se perguntando por que comento um livro que sequer é lançamento recente. Devo admitir que só o li agora e que não pude deixar de fazer um paralelo com a situação atual do crack no Brasil. Como?
Não estarei praticando spoiler se disser que o mocinho não morre no final. Todos sabem disso e basta um Google para verificar que ele continua na ativa, profissionalmente falando. O que então favoreceu a recuperação de David Carr e sua “volta por cima”?
O amor pelas filhas? Sem dúvida isso foi determinante para querer ficar limpo, porém o raciocínio é simplista.
A responsabilidade com relação ao trabalho? Aspecto igualmente relevante. Enquanto transitava no mundo alucinado, alternando passagens em clínicas de reabilitação com recaídas pantagruélicas, Carr ainda assim conseguiu manter-se na maioria de seus empregos e sua reputação profissional nunca declinou. Pelo contrário, ao ter sua condição de dependente químico reconhecida, alguns entrevistados que encontravam-se vulneráveis por terem tido participação em algum evento mais constrangedor que um simples porre na festa da firma sentiam-se emocionalmente mais seguros na presença de alguém como ele, com seu histórico tão enlameado a ponto de não inferir valor no caráter alheio (aquela credibilidade que falta a muitos jornalistas, que são julgadores de tudo e de todos, com uma autoridade que ninguém concedeu).
Ao fato de viver nos EUA? Como de costume, David Carr também faz sua lista de agradecimentos no final do livro. O agradecimento mais importante e emblemático, a meu ver, está no meio de suas páginas. Ali o autor agradece ao estado de Minnesota por não desistir dele, bancando-lhe internações e tratamentos (ele se redime ao calcular já ter pago mais de 300 mil dólares em contrapartida na forma de impostos desde que está limpo). Foi inevitável lembrar do difamado Cartão-Recomeço, pejorativamento chamado de bolsa-crack.
Acreditar na recuperação, apoiar o cidadão, são atitudes fundamentais para o sucesso e reinserção na sociedade. Não se pode decretar pessoas como casos perdidos sem persistir na ajuda, no tratamento. Quão fundo alguém pode ir a ponto de ainda ter fôlego para voltar? Para mergulho em apnéia sei que é algo na casa dos 100 metros. Em caso de uso de drogas, a placa de última saída da estrada varia conforme o motorista. Mesmo depois de 14 anos limpo, Carr teve uma recaída com o álcool há não muito tempo. É uma luta eterna e não há solução milagrosa nem definitiva.
Com conhecimento de causa (não própria até onde sei, mas com casos na família – quem não os tem?) a analogia que faço para o dependente químico é o de alguém regido pelas mesmas regras do período paleolítico: deve-se permanecer no interior da caverna pelo maior tempo possível. A cada vez que se coloca o nariz para fora estará correndo riscos altíssimos e mortais. Até dentro de sua toca o homem está sujeito a que alguma criatura monstruosa se atreva a invadi-la. Vigilância constante é o lema. Sorte de David Carr não ter sido um nóia da cracolândia.

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